09/08/2022

Setor de contêiner passou de ‘super-herói’ a ‘vilão’ do comércio marítimo, diz economista europeu

 Setor de contêiner passou de ‘super-herói’ a ‘vilão’ do comércio marítimo, diz economista europeu



Economista especializado em transportes marítimos, Fernando Grilo, que vive em Lisboa (Portugal), acumula 20 anos de experiência em negócios internacionais na África, com destaque em Angola, Moçambique e Cabo Verde, e mais recentemente na China e Rússia. Dentre as suas especialidades estão a gestão de projetos, planejamento estratégico, marketing de serviços de transporte marítimo.


Em entrevista exclusiva à Portos e Navios, ele traçou um cenário do transporte marítimo em um mundo pandêmico e de guerra no leste europeu, passando pela movimentação global do setor de contêineres e da alta de preços do frete, até chegar às tecnologias que visam à sustentabilidade na navegação marítima, como o combustível produzido a partir do hidrogênio. Ele ainda lembrou sua experiência e participação em projetos no Brasil.


Confira abaixo a entrevista com Fernando Grilo.


Portos e Navios: Após quase seis meses do início da guerra da Rússia contra a Ucrânia, como avalia o cenário econômico em torno do transporte marítimo, tanto na Europa como no restante do mundo? Pode opinar também sobre o cenário global da indústria naval e offshore (petróleo e gás)?


Fernando Grilo: Com a invasão da Ucrânia pela Rússia e o desenrolar de uma guerra, que já dura aproximadamente seis meses, é tempo de refletirmos sobre o que está ocorrendo no transporte marítimo. Em primeiro lugar, temos de reconhecer que a globalização da economia mundial não era o caminho para o paraíso, como alguns tentaram nos convencer.


A queda de diferentes barreiras no comércio internacional, o desenvolvimento de um transporte marítimo eficiente, com taxas de frete razoáveis, os sistemas de produção ‘just in time’ e a possibilidade de comprar e vender do outro lado do mundo, com base em cadeias logísticas relativamente transparentes e controladas online, nos levaram a acreditar que existia uma vida fácil.


Agora, queremos ver defendidos simples princípios de Direito Internacional, como a soberania dos Estados, e percebemos que, estando os países envolvidos em uma intrincada rede de interesses econômicos, ficamos dependentes das empresas que exploram e dos ‘brokers’ que comercializam o gás natural da Rússia, os cereais da Ucrânia, o lítio da China, o cobre e o cobalto da República Democrática do Congo, etc.


Alguns desses países interpretam os referidos princípios de forma diferente, ou melhor, têm estratégias de expansão territorial internacional contidas ou disfarçadas, sob palavras bonitas como, por exemplo, a criação da Eurásia ou a iniciativa ‘belt and road’, respetivamente, da Rússia e da China. Alguns governos, em particular na União Europeia, agora dizem querer travar a dependência, em particular a energética, trazer de volta a indústria que as empresas residentes transferiram para a Ásia ou, por exemplo, voltar à produção de trigo até atingir a autonomia, como é o caso de Portugal.


Esse retorno ao protecionismo pode ser um bom motivo de propaganda em tempos de eleições, porque é anunciada, ao mesmo tempo, a criação de postos de trabalho. Mas as empresas internacionais sabem que isso não é sério, não existe verdadeira vontade política e não há forma prática de fazer regredir a globalização de forma rápida e fácil.


Os armadores e os operadores de transporte marítimo internacional sabem que no comércio internacional, apesar das sanções, dos aumentos de custos e do congestionamento dos portos, o negócio continua como antes. Não se encontram armadores abandonando planos de construção de navios porta-contêineres de mais de 20 mil TEUs, com receio de que a deslocalização das indústrias da China para a Europa e para os Estados Unidos leve a uma redução do tráfego de contêineres.


Vemos, por exemplo, o CEO da Maersk anunciando elevados lucros em 2022 e afirmando que a empresa obteve esses lucros porque foi capaz de controlar a capacidade oferecida no mercado. No passado, as linhas de contêineres ofereciam serviços regulares, com itinerários e navios pré-definidos. Hoje, com base nas tecnologias de informação e no contexto das alianças, as linhas de contêineres podem corresponder, no dia-a-dia, à procura de serviços, por não ter uma frota de navios operando em um serviço de forma permanente e as escalas nos portos serem feitas apenas se existir movimentação que justifique.


Se a procura por transporte marítimo de cereais passou a sofrer forte pressão em algumas regiões, porque existem navios bloqueados e portos congestionados, os fretes sobem mais e mais. Quando a procura regredir e a capacidade de transporte estiver normalizada, os fretes vão baixar os preços.


PN: Como avalia o atual cenário de alta dos fretes marítimos, principalmente por conta da movimentação portuária dos Estados Unidos e da China, pós-pandemia?


FG: Sei que existem acusações e alguns sinais de práticas anticoncorrenciais, por parte dos operadores internacionais de serviços de linha, que levaram à forte alta dos fretes marítimos. Os operadores mudaram de estratégia, centralizaram sua gestão no controle da capacidade oferecida, e não na conquista de mais cargas dos seus clientes. Eles apostaram na vertente operacional, e não na vertente comercial — em que os riscos de infringir regras da concorrência são maiores.


Com essa estratégia, os operadores conseguiram elevar seus lucros, mas disso eles não podem ser acusados, pois isso ocorreu apenas para funcionar no contexto do mercado. Até agora, eu não encontrei nenhum governo ou agência reguladora internacional que demonstre que tenham existido práticas anticoncorrenciais graves por parte dos operadores. Mas como me referi anteriormente, depois da guerra virá o ‘business as usual’ e o transporte marítimo de contêineres tem todas as condições, meios, gestão e tecnologia para continuar a ser a base das cadeias logísticas globais.


Algumas alterações estruturais, no entanto, vão prevalecer com limitação do papel dos transitários e de todos os intermediários logísticos. Os armadores investiram seus lucros na aquisição de operadores logísticos internacionais e empresas de transporte aéreo, apostando no controle integral das cadeias logísticas. O fenômeno das fusões e aquisições de operadores não parou. Parece provável que, perante diferentes estratégias de seus membros, as alianças entre países sofram alterações, em 2023.


PN: Hoje, muitos países são dependentes do gás natural importado da Rússia. Como avalia essa situação, citando as principais nações dependentes, e o que poderia ser feito para mudar isso? Como analisa, hoje, as propostas do International Energy Agency (IEA) nesse sentido?


FG: A Alemanha e vários países da União Europeia estavam importando gás natural por gasodutos da Rússia, porque era fácil e barato e porque os oligarcas russos proporcionavam, a alguns políticos, bons salários em novas carreiras como CEO das suas empresas e viagens em iates de luxo. O gás natural foi, durante algum tempo, considerado uma alternativa ao petróleo, no objetivo de reduzir as emissões de dióxido de carbono (CO2). Sua utilização na UE foi promovida em larga escala, por meio de financiamentos a diferentes tipos de projetos.


Em Portugal, o governo – seguindo orientações e financiamentos da UE – elaborou um plano nacional, em 2016, para sistemas de abastecimento de gás natural líquido para navios nos principais portos, utilizando navios com propulsão a GNL em todos os portos e também no transporte marítimo para as regiões autônomas dos Açores e da Madeira. Esse plano, lido hoje, é um disparate.


Depois, a UE descobriu que a extração, liquefação, transporte e utilização de gás natural em motores de combustão envolviam perdas significativas de metano para a atmosfera, um gás de efeito estufa com forte potencial para o agravamento do aquecimento global. O gás natural passou a ser apenas uma energia de transição, perdeu o fulgor e, simultaneamente, perdeu grande parte do interesse dos investidores e financiadores de projetos.


A Alemanha importa gás natural por gasoduto da Rússia e importa muito pouco gás natural liquefeito por via marítima. Sua dependência dos russos não foi fruto do acaso, mas de decisões políticas e econômicas. O gás natural líquido envolve liquefação e armazenamento na origem, transporte marítimo e armazenamento, por isso tem um custo superior. Em curto prazo, não existem nem fontes de abastecimento de GNL, nem navios para transporte, nem terminais de descarga suficientes para substituir em curto ou médio prazo a importação da Rússia por gasoduto. E tudo isso requer fortes investimentos o que, em uma energia de transição até 2030, não faz muito sentido.


PN: Como avalia o atual cenário do setor de transporte marítimo de contêineres, entre acertos e erros?


FG: Entre 2020 e 2022, o contêiner passou de super-herói do comércio marítimo a vilão. Os operadores de linhas de contêineres proporcionavam, aos seus clientes, a organização de cadeias logísticas eficientes, usando navios e terminais portuários com sofisticada tecnologia, com extensões terrestres por via rodoviária e ferroviária, e utilização de plataformas logísticas ou centros de distribuição junto às zonas industriais e comerciais.


Antes da pandemia, existiam problemas de congestionamento nos terminais que operavam os navios de mais de 20 mil TEUs. Com a pandemia, a China e outros países tomaram medidas bruscas de fechamento de territórios e de terminais portuários, e o congestionamento nos portos se estendeu a todo o mundo. Centenas de navios ficaram parados com contêineres a bordo.


Os operadores dessas linhas aumentaram as taxas de frete e criaram adicionais, que levaram ao aumento do preço total do transporte marítimo em contêineres de forma brutal. As cadeias logísticas foram afetadas, em parte porque a procura nos Estados Unidos e na Europa, por alguns bens e equipamentos oriundos da Ásia, não sofreu redução com a pandemia. Em situação de desespero, alguns grandes clientes do transporte internacional – por exemplo, a Amazon – decidiram afretar navios e organizar seus próprios serviços de transporte marítimo. Os operadores tiveram de agir de forma fria e racional, ao contrário do que faziam no passado quando, em vez de injetarem mais oferta, reduziram a oferta de forma significativa.


O conceito clássico de serviço de linha regular, com frequência de itinerários fixos e permanentes, foi abandonado. As saídas de navios e as escalas nos portos passaram a ser anuladas, quando o movimento previsto se revelava não rentável. A qualidade dos serviços deixou de ser preocupação, pois ter serviço de transporte já era um privilégio. Com essa postura, os operadores conseguiram aumentar substancialmente seus lucros, à medida que seus clientes sofreram fortes perdas.


No início de 2022, quando a pandemia começou a recuar e era prevista uma forte recuperação na economia mundial, veio a guerra na Ucrânia. As previsões mais recentes apontam para a possibilidade de uma recessão na economia mundial, em 2023. No entanto, os operadores de linhas de contêineres não se mostram preocupados, pois aprenderam a lição de que gerir bem a capacidade oferecida dá melhores resultados do que concorrer por quotas de mercado.


PN: Qual é a importância das novas tecnologias para o transporte marítimo, que têm visado à redução das emissões de gases de efeito estufa (CO2) na atmosfera?


FG: Para fazer deslocar um navio de transporte de minério de ferro com 400 mil toneladas de porte bruto ou um navio ‘ferry-catamaran’ para 400 passageiros são necessárias energias e sistemas de propulsão muito diferentes. No entanto, cada nova tecnologia é apresentada como se tratasse de uma solução para todas as situações. Isso ocorre porque, para aplicar a nova tecnologia, é preciso um mercado com dimensão de forma a atrair os investidores e entidades financeiras públicas e privadas que, para isso, moldam-se um pouco à realidade.


Os armadores, que pretendem expandir ou renovar suas frotas, se defrontam com extremas dificuldades, ao terem de decidir sobre qual tecnologia utilizar, para corresponder às obrigações de redução das emissões de gases de efeito estufa (CO2) na atmosfera.


PN: O senhor acredita que o hidrogênio verde é, de fato, o combustível do futuro para os navios? Como vê o processo de descarbonização na navegação marítima?


FG: Derivados de hidrogênio – como a amônia, o metanol e a e-querosene (querosene para a aviação produzida utilizando eletricidade) – terão um papel fundamental na descarbonização do setor de transporte pesado, tanto da aviação, marítimo quanto de outros segmentos do transporte por caminhão. Mas a substituição só terá escala significativa no final da década de 2030.


O hidrogênio será transportado por pipeline (gás comprimido) em distâncias médias, dentro e entre países, mas quase nunca entre continentes. O transporte de hidrogênio líquido por navio tem várias limitações: a quantidade de energia necessária para liquidificá-lo e a possibilidade de libertação no ar (‘boil off’). Nesse contexto, a capacidade máxima de transporte é de 2,5 mil metros cúbicos (equivalente a 175 toneladas).


A amônia, obtida pela conversão do hidrogênio, é o produto mais seguro e mais conveniente de transportar por navio. Por volta de 2050, aproximadamente 59% da amônia relacionada à energia será comercializada entre regiões, sendo transportada em navios semelhantes aos LPG (navios de 60 mil metros cúbicos, o equivalente a 40 mil toneladas de amônia ou 6 mil toneladas de hidrogênio, com refrigeração a -50ºC.


Temos de ter cuidado com as posições fundamentalistas de alguns governos que, assim como ocorreu com o gás natural, pensam no hidrogênio como única energia do futuro. Já encontrei cenários em que ele seria produzido em grande quantidade junto aos produtores de gás natural – por exemplo, no Qatar – e depois transportado por navio para a Europa, algo tecnicamente inviável e contraproducente para os objetivos de redução dos gases de efeito de estufa.


PN: Como avalia a privatização de portos públicos, assim como vem ocorrendo no Brasil?


FG: Em alguns momentos, eu tentei acompanhar os processos de privatização no Brasil, mas a complexidade e a vastidão do problema não me permite uma avaliação rigorosa. O modelo de gestão designado por ‘landlord port’ em que as infraestruturas, nomeadamente os terminais, são cedidas a empresas operadoras privadas, mantendo a autoridade portuária (AP) o controle dos terrenos onde se desenvolve o porto, é o dominante e mais popular na Europa e na América. No entanto, possui uma série de variantes, dependendo do nível de descentralização e de autonomia da AP, da divisão entre os investimentos em infraestrutura entre a autoridade portuária e os operadores de terminais privados, ou do nível de envolvimento do ‘dono da promoção’ e das melhorias das atividades portuárias.


Entendendo que autoridade portuária é um poder público e a administração portuária é gestão, a desestatização, no sentido de uma privatização da própria AP, vai muito além do modelo comum na Europa e me parece fruto de uma avaliação muito negativa da intervenção dos governos por meio das administrações portuárias na gestão portuária.


PN: Como a Europa vê o Brasil na questão do transporte marítimo?


FG: Tenho acompanhado, com particular interesse, a liberação progressiva do transporte de cabotagem, tendo em vista o aumento da oferta, do incentivo à concorrência e da melhora da qualidade dos serviços prestados.


As empresas que lideram a cabotagem de contêineres são, hoje, subsidiárias de operadores internacionais, como a Maersk (Aliança) e MSC (Log-In). Isso me parece ser um bom sinal de melhorias da integração entre o tráfego nacional e internacional. E não encontrei referência a aspectos negativos desse processo. Essa é uma experiência que deveria ser avaliada, em países como Angola e Moçambique, onde o transporte de mercadorias entre portos nacionais é quase inexistente.


PN: Como Portugal, que historicamente tem laços antigos com o transporte marítimo, lida hoje com esse mercado?


FG: O setor de transportes marítimos de mercadorias em Portugal está limitado a três armadores, que se dedicam à cabotagem insular nacional (ilhas da Madeira e dos Açores) e internacional (Cabo Verde e Guiné Bissau). Infelizmente, a visão e a capacidade financeira daqueles armadores não possibilitam a eles outro tipo de diversificação internacional.


PN: Por fim, o senhor conhece o Brasil e já visitou algum porto daqui? Pode nos contar sua experiência?


FG: No passado, tive algumas pequenas experiências de trabalho em projetos no Brasil, nomeadamente com a concessionária CCR Barcas, cuja atividade no transporte de passageiros em linhas tem fortes semelhanças com a empresa portuguesa Transtejo, além do estudo da logística de exportação em um projeto de mineração, na Bahia. A dimensão do mercado de transporte marítimo e portuário no Brasil é deslumbrante, mas sua experiência nesse setor devia ser muito melhor aproveitada, no contexto da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP).


Fonte: Portos e Navios



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