29/01/2021

Rodovias e governo paulista vivem novo embate

 Rodovias e governo paulista vivem novo embate


O governo de São Paulo está perto de inaugurar mais uma disputa bilionária com o setor de rodovias. De um lado, as companhias pedem um ressarcimento pelas perdas provocadas pela pandemia - apenas entre março e junho, no auge do isolamento social, as concessionárias calculam uma perda de R$ 850 milhões nas rodovias paulistas. De outro, o governo afirma que não reconhecerá o direito a um reequilíbrio, segundo disse, ao Valor, o secretário Projetos, Orçamento e Gestão, Mauro Ricardo Costa.

“Não há essa discussão, não está colocada. Não há a possibilidade de reequilíbrio por queda de tráfego. O tráfego é risco do concessionário”, afirmou Costa.

O impacto da pandemia deverá ser mais uma das muitas controvérsias pendentes entre concessionárias e Estado. Hoje, a Agência de Transporte do Estado de São Paulo (Artesp), responsável pela regulação das concessões, tem um enorme estoque de pendências com o setor.

Algumas delas aguardam uma solução há quase dez anos, e muitas estão judicializadas. A situação tem levado a uma deterioração do ambiente regulatório em São Paulo, avaliam executivos e assessores do setor privado, que falaram sob condição de anonimato.

A percepção é que a agência tem sofrido com a interferência política do governo e com uma forte paralisia na tomada de decisões.

Por um lado, a gestão Doria tem buscado destravar problemas do passado, o que as empresas apoiam. Por outro, causa preocupação a intervenção na agência reguladora, cujas decisões devem ser técnicas e independentes. Questionado sobre o tema, Mauro Ricardo negou a interferência e diz que participa de negociações, mas respeita a autonomia do órgão.

No caso referente à pandemia, porém, a percepção é que a Artesp não avançou no tema até agora por orientação do governo.

Em maio do ano passado, a própria agência chegou a fazer um aditivo contratual com uma concessionária da gestora Pátria (a Eixo SP), reconhecendo que a pandemia é um caso de força maior - o que dá direito a um ressarcimento. A Procuradoria Geral do Estado (PGE) também emitiu um relatório reconhecendo a questão.

Ao ser questionado pela reportagem sobre os documentos, o secretário disse que desconhece o assunto. Perguntado sobre pareceres do governo federal, que também reconheceram o direito a reequilíbrio, ele afirmou que “aqui é governo estadual, não federal”.

O presidente da Associação Brasileira de Concessionárias de Rodovias (ABCR), Marco Aurélio Barcelos, diz que até agora a sinalização do governo paulista foi positiva. “Continuamos com a expectativa de que a questão, como vem sendo feito com outros governos, será equacionada.”

O secretário afirma que a Artesp terá liberdade para decidir sobre os reequilíbrios. No caso das negociações sobre disputas judicializadas, ele ressalta que não se trata mais de uma decisão apenas da agência. “Estamos buscando, em vez de delegar ao Judiciário a decisão, tentar construir um consenso”, diz. Além disso, ele destaca que o governo também tem reivindicações e cobra valores das companhias.

No caso dos reequilíbrios judicializados nos últimos anos, há aqueles no setor privado que de fato defendem a intervenção do governo. Na visão de fonte que acompanha o tema, o governo está só tentando resolver questões que, por anos, a agência não conseguiu resolver sozinha. Para outros, porém, a crescente influência, nesse e em outros temas, é preocupante.

Um dos fatores que reforçou o incômodo do setor foi a indicação de Milton Persoli para a diretoria-geral da Artesp, em junho. Ele atuava como secretário-adjunto na pasta de Logística e Transporte, e a nomeação foi vista como mais política que técnica.

Outro sinal de alerta ocorreu em julho, quando a diretoria da Artesp voltou atrás em uma decisão sobre um reequilíbrio da Ecorodovias. Primeiro, foi concedido um ressarcimento à empresa, no valor de R$ 1,6 bilhão. Dias depois, o órgão revogou a decisão após queixa do governo. Segundo Mauro Ricardo, neste caso, houve um erro processual por parte da Artesp, já que o Estado não fora ouvido antes da decisão.

Meses depois, veio à tona a reforma administrativa do governo estadual. No texto, foi incluída uma cláusula que reduzia a autonomia da Artesp, o que foi visto como um recado do governo. O artigo em questão definia que qualquer decisão da agência com impacto orçamentário (como reequilíbrios) deveria ter aval do governo. Após a reação negativa, o texto foi alterado: pela lei, as decisões não requerem aval do governo, apenas notificação prévia para que possa se manifestar.

O secretário diz que a ideia do projeto sempre foi fortalecer a agência, mas, nesse artigo específico, o objetivo era garantir que o governo seja ouvido antes das deliberações, tal como as concessionárias têm direito a uma defesa.

Para uma pessoa próxima à Artesp, um fator decisivo será a troca de dois diretores, cujos mandatos acabaram em dezembro - uma delas, Renata Dantas, era vista como uma defensora da autonomia do órgão. Para Barcelos, há uma expectativa forte em relação às nomeações, que o setor espera que sejam técnicas. Segundo o secretário, as indicações serão feitas até fevereiro, e serão técnicas.

A autonomia das agências reguladoras não é uma preocupação recente, afirma Luis Eduardo Serra Netto, do Duarte Garcia, Serra Netto e Terra Advogados. “Os órgãos foram criados nos anos 1990 para serem autônomos, mas nos últimos dez anos houve uma perda de independência, e em São Paulo não foi diferente. A visão é que não há autonomia nas decisões”, diz.

A avaliação de Letícia Queiroz de Andrade, sócia do Queiroz Maluf Advogados, é que as prerrogativas de cada ente precisam ser respeitadas. Por exemplo, no caso dos reequilíbrios, o governo já tem o poder de decidir como serão aplicados os ressarcimentos (se por pagamento, reajuste tarifário ou prorrogação contratual). “O problema é quando as partes ultrapassam suas prerrogativas.”

Procurada, a Secretaria de Logística e Transportes diz que “tem uma relação essencialmente técnica com a Artesp”. A agência afirmou que, por ser responsável por fiscalizar contratos entre poder concedente e setor privado, “deve atentar aos regramentos e auxiliar as partes em impasses, subsidiando com informações técnicas, históricos e relatórios”.

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