19/03/2021

Apagão logístico global paralisa montadoras, que pensam em nacionalizar peças


Se os problemas com a alta de preços dos insumos e a falta de componentes fossem resolvidos por mágica, ainda assim a indústria automotiva brasileira teria sérios entraves para retomar a produção. O setor é altamente dependente da importação de peças e de tecnologia, atividade que está limitada pelo apagão logístico global.

Além da falta de modais, os custos do transporte internacional dispararam. Segundo cálculo da Anfavea (associação das montadoras), houve um aumento médio de 105% no frete aéreo e de 339% no frete marítimo na comparação entre os meses de janeiro de 2020 e de 2021.

Diretor-executivo da DMS Logistics, empresa especializada em transporte internacional, Fernando Arruda lembra que, embora a situação tenha se agravado agora, o problema começou no início de 2020, quando as atividades foram interrompidas na China.

“Muitos fornecedores de matéria-prima e de manufaturados de primeira leva quebraram, e outros não conseguiram voltar com o mesmo tamanho, havia menos pessoas nas linhas de produção e de logística”, diz Arruda.

Com o caos instalado nas rotas marítimas —não há sequer contêineres disponíveis—, o custo do quilo transportado por avião, que havia caído para 15 centavos de dólar no período em que o mundo parou, saltou para até US$ 30 em alguns trechos, diz Arruda. A elevação também está relacionada à falta de porões disponíveis em voos comerciais, que seguem reduzidos.

Aeronaves que levavam passageiros partem agora repletas de caixas, que vão acomodadas sobre as poltronas ou no lugar delas. A prioridade é carregar insumos e equipamentos relacionados à pandemia de Covid-19, mas não necessariamente vacinas.

“As vacinas estão de fato com prioridade, mas não ocupam toda a cadeia logística devido a poucas empresas terem o perfil necessário para transportar esse tipo de material. Existe um elevado número de pré-requisitos que envolvem cubagem específica e refrigeração ideal para que não ocasione a perda do produto”, explica Felipe Criniti, diretor-executivo da Box Delivery, empresa de tecnologia especializada em logística e entregas urbanas.

Caso utilizem a solução aérea para trazer componentes, as montadoras e outras empresas do ramo industrial brasileiro pagam caro e nem sempre conseguem peças suficientes para encher um voo, pois as entregas estão fracionadas. As filiais brasileiras não são prioritárias neste momento.

“Os problemas de logística que visualizamos em diversos mercados têm origem na China, um país que historicamente cuida primeiro de seu próprio mercado em períodos pós-crise como o que estamos vivendo agora. Desde março de 2020 já apontávamos a iminência disso acontecer”, afirma Milad Kalume, gerente de desenvolvimento de negócios da consultoria Jato Dynamics Brasil.

Outro ponto que tem prejudicado a indústria automotiva é a concorrência com outros setores. “Os semicondutores são usados em TVs e celulares, mercados que tradicionalmente pagam mais para equipamentos que a área automotiva. Se há uma oferta restrita, como hoje, o mercado dita para onde vai a produção em função do faturamento”, diz Kalume.

Arruda chegou a acreditar que o nó logístico se desfaria no fim de 2020, quando a movimentação nos portos começou a melhorar. Mas como mostra reportagem do The New York Times publicada em 11 de março, a explosão do consumo via delivery nos EUA e o desembarque de materiais para o combate à pandemia em regiões de pouco fluxo marítimo —os contêineres vão, mas não voltam— continuam a pressionar o setor.

Empresa mais prejudicada pela falta de componentes e de meios de transporte internacional, a General Motors segue com linhas de produção paradas no Brasil. A unidade de Gravataí (RS), que fabrica o Chevrolet Onix, interrompeu as atividades neste mês e só deve voltar a operar em junho.

A consequência aparece nas vendas. O compacto da GM, que tem sido o carro mais vendido do país nos últimos anos, foi ultrapassado pela Fiat Strada na primeira quinzena de março.

A crise faz as montadoras voltarem a falar na necessidade de uma retomada industrial.

Nesta quarta (17), durante a abertura do Simea 2021 (Simpósio Internacional de Engenharia Automotiva), Carlos Zarlenga, presidente da General Motors América do Sul, disse que o Brasil precisa de reformas que permitam ao país se transformar em um hub de exportação, o que abriria portas para novos investimentos externos e a possibilidade de acompanhar a onda de eletrificação dos automóveis.

Em sua visita a fábricas brasileiras da montadora Stellantis na última semana, Carlos Tavares, presidente do grupo que reúne Fiat, Jeep, Peugeot e Citroën, disse que a empresa poderia apoiar a criação de um polo para produção de semicondutores fora da Ásia. Contudo o executivo alerta que um movimento como esse envolve gastos elevados. “Se quiséssemos aumentar a segurança do fornecimento, teríamos uma dificuldade enorme, iria se traduzir em um custo expressivo.”

Montadoras que dominam toda a cadeia produtiva têm sido menos afetadas. A Hyundai do Brasil segue com a produção regular em Piracicaba (interior de São Paulo), pois a matriz sul-coreana produz até aço e tem portos instalados junto às fábricas asiáticas para exportar insumos.

Em nota, a filial brasileira da montadora diz que “está ciente da falta de semicondutores que vem afetando a indústria de fabricação de veículos”. “Seguimos monitorando de perto a situação e colaborando com nossos fornecedores para manter a nossa produção estável.”

Com grande dependência de peças importadas para montar seus carros em Araquari (SC), a BMW ainda não teve problema de fornecimento, mas criou um grupo de trabalho para garantir a entrega de peças em condição mais crítica, como os semicondutores.

“Nosso time de logística trabalha com fornecedores globais que abastecem todas as 31 unidades de produção do grupo em 15 países no mundo. Compramos os suprimentos de forma antecipada para garantir entregas conforme os contratos assinados”, diz Mathias Hofmann, diretor geral da fábrica do BMW Group em Araquari.

Sobre a possibilidade de nacionalizar componentes, Hofmann diz que a empresa segue estudando oportunidades. “Isso sempre fez parte da nossa operação.”

O economista Felipe Gutterres, estudioso de infraestrutura em mercados emergentes, afirma que os fundamentos brasileiros estão frágeis. Há desvalorização do real, descontrole da pandemia e aumento do endividamento, fatores que afastam os investimentos do Brasil e dificultam uma retomada da indústria.

Seja por problemas logísticos ou por falta de insumos, o problema atual do mercado guarda semelhanças com outra crise de abastecimento, diz o economista. “No governo PT, especialmente no segundo mandato do presidente Lula, o forte incentivo ao consumo gerou uma grande demanda e a indústria precisou criar capacidade extra para atender o mercado interno”, diz Gutterres.

Com a crise que se agravou a partir de 2014, a demanda interna despencou e as fábricas passaram a operar com ociosidade superior a 50%.

“Agora, com o real tão desvalorizado, o Brasil poderia ser uma grande plataforma de exportação automobilística, mas os problemas na cadeia de suprimentos e as incertezas econômicas vem levando a indústria a rever o seu posicionamento no Brasil”, afirma o economista.

“Fazer negócios no nosso país exige um nível de complexidade tão grande que, quando adicionados ingredientes de mais instabilidade política e econômica, as empresas globais preferem encerrar as operações por aqui e se concentrar em outras regiões.”

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