O Brasil, pelo menos nas últimas quatro décadas, era visto como sinônimo de competência no serviço de imunização e produção de vacinas. Isso não é à toa. O país tem o maior programa público de imunização do mundo e distribui mais de 300 milhões de doses de imunobiológicos anualmente em todos os 5.570 municípios brasileiros.
Essa posição, no entanto, vem sendo colocada em xeque em meio à pandemia do novo coronavírus.
Na virada do ano, enquanto o país não tinha sequer autorizado o uso emergencial de algum imunizante, 46 países já vacinavam suas populações, entre eles Estados Unidos, Canadá, Reino Unido, França, Costa Rica, Rússia e Argentina.
A campanha de vacinação contra a Covid-19 começou entre os brasileiros oficialmente na segunda-feira (18), um dia depois de a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) autorizar o uso de um lote específico de 8 milhões de doses das vacinas Coronavac — produzida pelo Instituto Butantan em parceria com a farmacêutica chinesa Sinovac — e a britânica Oxford, do laboratório anglo-sueco AstraZeneca.
Em dezembro, o presidente Jair Bolsonaro chegou a assinar uma Medida Provisória que separa R$ 20 bilhões para despesas que forem necessárias para vacinar a população, o que engloba compra de vacinas, seringas, agulhas, logística, comunicação etc.
Mas uma série longa de erros de planejamento fez com que a chegada do imunizador atrasasse em vários estados e levantou preocupações entre especialistas sobre o futuro.
Por enquanto, seis milhões de doses da Coronavac foram distribuídas pelo país. As outras duas milhões da Oxford embarcaram para o Brasil somente na noite desta quinta-feira (21). O pedido pelas vacinas foi feito pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em 8 de janeiro.
O CNN Business procurou especialistas para entender os principais erros que já estão atrapalhando a distribuição das vacinas em todo território nacional.
Apostas em poucas vacinas
O governo federal apostou em poucas vacinas. Até agora, foram adquiridas 260 milhões de unidades da Universidade de Oxford em parceria com a AstraZeneca (sendo que 160 milhões só chegarão no segundo semestre) e 42,5 milhões por meio do Covax Facility, uma iniciativa da Fundação Bill e Melinda Gates. Ou seja, compramos mas não recebemos.
As vacinas da Pfizer e da Moderna, que já estão sendo utilizadas emergencialmente nos Estados Unidos e na Europa, seguem sem contrato firmado.
O estado de São Paulo garantiu 46 milhões de doses da Coronavac. Não fosse por isso, até agora, não teríamos tido nenhuma pessoa vacinada no Brasil.
Além de ficar refém de poucos laboratórios, a demora na negociação e da compra dificulta a negociação futura. Afinal, esses mesmos laboratórios já se comprometeram com outras nações. O preço também sobe. É aquela velha lei da oferta e da procura.
O mesmo problema aconteceu quando o governo foi atrás de comprar seringas e agulhas em um pregão internacional. Por causa da demora do governo em procurar esses itens, o valor subiu por causa da alta demanda.
"O maior erro ocorreu quando o governo decidiu concentrar toda a sua aposta em uma única vacina e tivemos a sorte do governo de São Paulo apostar em outra", diz Cláudio Frischtak, fundador da consultoria internacional de negócios Inter.B. "E por isso não faz sentido? Temos uma doença que se conhecia muito pouco há menos de um ano e havia um esforço múltiplo de várias empresas."
Falta de planejamento
Não por acaso, a falta de planejamento é, de longe, o motivo mais apontado por especialistas como o centro dos problemas e das preocupações com a distribuição e aquisição das vacinas. E essa falha começou a ser exposta logo no início da pandemia, com a falta de foco do Ministério da Saúde.
“É preocupante que só agora as vacinas estejam sendo adquiridas e importadas. Esse planejamento tinha que ter sido elaborado há muitos meses, como outros países fizeram. Ainda mais se tratando de um vírus cujo comportamento vem sendo estudado ao longo do ano todo”, diz Meireles.
O especialista lembra que Luiz Henrique Mandetta, quando estava à frente do Ministério da Saúde, já havia deixado claro que vários fornecedores diferentes da vacina deveriam ter sido acionados. “Veja quanto tempo estamos perdendo desde então”, diz Meireles.
Mandetta deixou o cargo de ministro em abril do ano passado, no momento mais grave da disseminação da doença, após desavenças com o governo federal sobre o protocolo do uso da hidroxicloroquina no tratamento do novo coronavírus. Depois dele, Nelson Teich assumiu o cargo, mas ficou menos de um mês, saindo pelo mesmo motivo.
“Tudo isso faz parte de um contexto muito maior do que o transporte propriamente dito. Se estamos tendo falhas de logística, é porque há falhas de planejamento estratégico”, diz Marcus Quintella, diretor da FGV Transportes.
Esquecer da logística
Mas um fato é que não podemos esquecer dos problemas logísticos do país. O Brasil já é conhecido por ser um país muito mais caro do que outros quando o assunto é transporte.
Para se ter uma ideia, a estimativa de custos logísticos no país é de 12% do PIB. Em outras nações, como Estados Unidos e Canadá, que também possuem dimensões continentais, o percentual cai para 8%. Na também emergente Rússia, não passa de 9,5%. Os dados são da consultoria Inter.B.
O Brasil possui uma malha aeroportuária razoável, com aeroportos nas grandes capitais e em cidades importantes do interior. O grande problema, no entanto, é na última milha: chegar em locais afastados dos grandes centros.
Esse problema consumado pode ser visto na crise do oxigênio ocorrida no Amazonas. Diversas cidades do interior demoraram ainda mais do que a capital para receber os insumos. Por isso, a estratégia é fundamental.
Não à toa, em setembro, professores da Fundação Getulio Vargas publicaram um documento no qual diziam que o governo federal considerava prematura a discussão sobre os desafios da logística. Detalhe: entidades envolvidas com a saúde pública já estavam atrás do governo para pensar no melhor planejamento.
Até a Associação Internacional de Transporte Aéreo (IATA) chegou a alertar o governo brasileiro sobre a necessidade de começar urgentemente um cuidadoso planejamento com os operadores logísticos, empresas aéreas e rodoviárias, concessionárias de rodovias e aeroportos e embarcadores fluviais.
“Os operadores logísticos trabalham com base no plano que recebem do poder público. Mas o plano só chegou agora e ele não é pleno, está sendo questionado”, diz Cesar Meireles, diretor presidente da Associação Brasileira de Operadores Logísticos (Abol).
Se o Brasil adquirir as vacinas da Pfizer e da Moderna o problema ainda aumenta: elas precisam ser transportadas em temperaturas baixíssimas. Essa é a grande preocupação de Tim Robertson, CEO das Américas da DHL Global Forwarding, uma das maiores empresas logísticas do mundo. Segundo ele, as vacinas não terão problema nenhum na viagem até o aeroporto – depois de lá, no entanto, começam os desafios.
Problemas diplomáticos
Hoje, o Brasil depende, principalmente, de dois países: China e Índia. Afinal, os dois países são os principais produtores de vacina no mundo, já que possuem as duas maiores populações do planeta.
As falas do presidente Jair Bolsonaro contra a vacina chinesa, além das acusações de que o novo coronavírus seria um “vírus chinês”, não ajudaram nessa questão diplomática.
No entanto, esse problema com os chineses já vem desde o início do governo, personificado na figura do ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo. Identificado com pautas como “antiglobalismo” e também com o ex-presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, Araújo sempre atacou os chineses. O Brasil, portanto, deixou de ter a prioridade.
“A diplomacia cometeu erros primários e fez o Brasil ficar isolado”, diz Frischtak.
No caso da Índia, o Brasil deixou de se alinhar com países emergentes no pedido de quebra de patente farmacêutica em produtos e medicamentos vinculados ao combate à pandemia. O país preferiu se alinhar aos países desenvolvidos na Organização Mundial do Comércio (OMC), como Estados Unidos, Japão e a União Europeia. Isso não pegou bem com os indianos.
Resultado: a Índia colocou países como Butão, Maldivas, Bangladesh, Nepal, Mianmar e Seychelles na frente da fila para receber as vacinas. Só na noite desta quinta-feira (21), as primeiras vacinas de Oxford embarcaram para o Brasil.
O básico não foi feito
O Brasil costumava ser referência no que diz respeito a vacinas não à toa.
O Programa Nacional de Imunização (PNI) funciona desde 1973 e conseguiu erradicar uma série de doenças que já assombraram a população, como varíola, poliomielite (paralisia infantil), tétano e difteria, com a vacinação em massa.
Com essa experiência no currículo, o Brasil poderia estar numa posição muito mais confortável em relação a outros países na distribuição da vacina.
“Para as campanhas de vacinação de rotina que acontecem no país, esse planejamento é feito há décadas e acontece de forma absolutamente previsível. Quer seja ele feito com o Butantan, Fiocruz ou com outra fonte fornecedora”, diz Meireles, da Abol.
“Não tem nada de diferente do que já se fez até agora com outras vacinas, não há medo na falha de distribuição, mas o que acontece é um programa político, que vem desde a importação de matéria prima”, diz Quintella.
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