O setor logístico mundial passa por uma sucessão de novos desafios que vão demandar resiliência, dinamismo e soluções rápidas para garantir o abastecimento em segurança, num cenário ‘pós-pandemia’ e com a pressão econômica e incertezas por conta dos reflexos da guerra entre Rússia e Ucrânia e da crise entre os países da Organização do Tratado Atlântico Norte (Otan) e o presidente russo Vladimir Putin.
Especialistas avaliam que o consumo básico não será afetado drasticamente num primeiro momento, mas existe tendência de aumento do redirecionamento dos mercados caso o conflito no leste europeu e sanções econômicas se estendam por mais tempo.
A diretora-executiva da Associação Brasileira dos Operadores Logísticos (Abol), Marcella Cunha, ressaltou que as suspensões aplicadas por empresas do segmento em operações na Ucrânia e em algumas regiões vizinhas por tempo indeterminado já causam efeito nos serviços expressos, aqueles ligados à movimentação de pacotes, encomendas, correspondências e documentos. A previsão da Abol, que reúne 30 grandes players nacionais e estrangeiros de diferentes cadeias produtivas do setor, é de que as consequências sejam significativas caso os conflitos se estendam por um longo período.
Os conflitos no leste europeu levaram operadores logísticos a reverem o destino de determinadas cargas. “Neste momento o foco dos operadores logísticos, cujos funcionários operam em portos, aeroportos, terminais logísticos, centros de distribuição, entre outros, da região, está na prestação de seus serviços apenas se feita de forma segura e, sempre que possível, sem interrupções”, disse Marcella.
A diretora-executiva da Associação de Terminais Portuários Privados (ATP), Luciana Guerise, observa que a pandemia trouxe à mesa preocupações com respostas ágeis e melhoria tecnológica. Ela acrescenta que, passado o sufoco dos lockdowns no primeiro ano de pandemia, o que se vê é um novo cenário mundial, tanto nas relações profissionais como pessoais. “Estamos passando por dilemas existenciais e o primeiro deles é o retorno de uma guerra que nunca teve fim. O capítulo 'Ucrânia e Putin' é só mais um para preencher os próximos livros de história”, avaliou Luciana.
Ela também vê como dilemas o colapso ecológico, o qual já considera uma realidade, e a disrupção no campo das tecnologias. “A disrupção tecnológica se fundamenta nos dois primeiros: a guerra e o colapso ecológico. Me fazendo valer das palavras do professor Yuval Harari (autor da trilogia Homo Sapiens), a inteligência artificial (IA) mudará profundamente o mundo e suas relações a cada 10 anos – 2025/2035/2045/2055”, analisou. Luciana percebe que Estados Unidos e China já estão em uma espécie de ‘corrida armamentista’ pelo controle da IA.
Entre os riscos políticos, segundo Luciana, estão a ascensão das ditaduras digitais e seus regimes totalitários de controle, tendo em vista que a vigilância de governos estrangeiros por parte desses dois países já existe. “A inteligência artificial tomará decisões por nós e o grande perigo é a venda de um produto político que pode não ser bom para o Brasil, mas para as conveniências da China ou dos EUA”, comentou. Luciana considera que a guerra poderá afetar o agronegócio porque o Brasil é dependente do fertilizante, por exemplo, mas não afetará a necessidade de alimentar o povo chinês.
Para Luciana, quando existe projeto de Estado, mudanças de governo não afetam a infraestrutura. Ela citou as atuais concessões portuárias, rodoviárias e ferroviárias, que já existiam há tempos, e tiveram sequência no atual governo, capitaneadas pelo Ministério da Infraestrutura. “São projetos antigos, mas adormecidos nas gavetas do TCU (Tribunal de Contas da União) ou do próprio executivo e que foram solucionados”, destacou. Luciana lembrou que, há décadas, eram discutidas regras da cabotagem, a desestatização dos portos e as autorizações ferroviárias.
A diretora-executiva da ATP defende que ter uma capacidade de infraestrutura terrestre e aquaviária é crucial para o Brasil, que não depende exclusivamente do governo, mas principalmente do capital privado estrangeiro. Luciana destacou que, ano após ano, os players privados vêm mostrando apetite nos ativos brasileiros. “Em época de eleição, os investidores diminuem o ritmo apenas para esperar o próximo mandatário. Passado o pleito eleitoral, a vida se reinicia a todo vapor justamente porque nosso país é ‘commoditizado’. Vendemos comida, combustíveis e minério”, destacou.
Juliana Senna, sócia do escritório Kincaid Mendes Vianna, também observa que, para expansão da capacidade, a indústria marítima e portuária exige investimentos que não têm efeitos imediatos, mas que devem gerar uma expansão da capacidade no médio e longo prazo. “É o caso de leilões de arrendamentos, concessões e até as privatizações em um cenário mais de longo prazo", projetou.
Juliana acrescentou que, em 2021, o Brasil bateu recordes de movimentação portuária com um aumento de 4,8% com relação a 2020, segundo dados do Ministério de Infraestrutura. A advogada lembrou que a projeção é que, em 2022, seja observado um aumento em relação a 2021, motivado por investimentos privados nos portos e iniciativas do governo.
As empresas com atuação internacional filiadas à Abol suspenderam, por tempo indeterminado, as operações na Ucrânia e países vizinhos, como Belarus. O fechamento de escritórios na Ucrânia também integra as medidas de alguns operadores. A associação monitora diariamente as sanções comerciais e econômicas adotadas pelos países à Rússia, assim como o posicionamento oficial do governo brasileiro sobre os impactos dos conflitos no leste europeu na logística brasileira. Os produtores estão viabilizando a realocação das cargas.
Marcella contou que os exportadores estão renegociando seus contratos e buscando novos destinos, como Reino Unido, Europa e África, inclusive ajustando-se às exigências sanitárias que alguns deles impõem. “Trata-se de um momento em que o Brasil e as empresas devem rever a possibilidade de viabilizar a produção de fertilizantes internamente, ainda que as dificuldades naturais e de infraestrutura sejam um gargalo”, defendeu.
Entre os produtos exportados pelo Brasil à Rússia impactados pelo novo cenário nas últimas semanas, de acordo com a Abol, estão o amendoim e o frango com reduções de até -25% e de até -15%, respectivamente. Marcella explicou que esses produtos lideram a pauta brasileira de exportações no leste europeu. Nas importações, houve queda no fluxo de produtos como asfalto e agroquímicos em geral, especificamente fertilizantes. Como o volume de amendoim embarcado pelos operadores não é tão grande, os exportadores puderam se adiantar e segurar as exportações para Rússia e Ucrânia logo no início do conflito.
As cargas de amendoim e outros produtos ficaram paradas no Brasil, aguardando serem redirecionadas a novos destinos ou maior segurança e garantias para serem enviados à Rússia. Nesse sentido, ela chamou a atenção para a necessidade de revisão contínua das estratégias de ‘global sourcing’ (foco em fornecedores diferentes pelo mundo) para insumos, produtos e serviços, na tentativa de mitigar riscos em torno do negócio, principalmente em situações imprevisíveis e de incertezas, como a que o mundo vive agora.
Fonte: Portos e Navios