A sanção do marco legal do Hidrogênio de Baixa Emissão de Carbono, chamado de hidrogênio verde ou de baixa emissão, em agosto, deve ajudar a tirar da gaveta projetos que ainda esperavam um amparo legal para virar realidade. Mas embora o novo ambiente regulatório ofereça maior segurança jurídica aos investidores, ainda há pontos de atenção que não foram endereçados na lei, como a alocação dos incentivos ao setor com recursos do Tesouro Nacional, proposta que divide opiniões; a destinação da produção, que inicialmente tende a ser apenas para o mercado externo; e como se dará o processo de certificação do hidrogênio em conformidade com os padrões internacionais, principalmente o europeu.
Só no Ceará, no Porto de Pecém, há 36 memorandos de entendimentos, sendo que seis empresas - Fortescue, Casa dos Ventos, Qair, Voltalia, FRV e AES Brasil - estimam investimentos que somam US$ 30 bilhões. Os dados são da Federação das Indústrias do Estado do Ceará (Fiec), com base no estudo da consultoria americana IXL com participação de especialistas de Harvard e do MIT.
Dos investimentos já garantidos, a Fortescue tem um projeto de R$ 20 bilhões. “[Para este investimento] tem equity e alavancagem, que pode vir do BNDES, BNB e de bancos internacionais (...). Estamos no processo de sindicato de bancos para escolher o ‘financial advisor’, que é o banco que vai coordenar outros bancos para financiar o investimento”, disse o presidente da companhia, Luis Viga.
A mineradora australiana já recebeu a primeira licença prévia do “hub” cearense e iniciou as obras de terraplanagem na área de 100 hectares. A meta da empresa é produzir 837 toneladas de hidrogênio verde por dia, a partir de 2027. Para isso, planeja um consumo de 2,1 GW de energia renovável.
A Casa dos Ventos tem assegurado o terreno junto à Zona de Processamento de Exportação (ZPE) do Porto de Pecém e as licenças ambientais. Lucas Araripe, diretor-executivo da empresa, diz que tem R$ 200 milhões em recursos garantidos para a finalização dos estudos. O objetivo é a exportação de amônia verde para os principais mercados mundiais.
“Na frente comercial, estamos mantendo diálogos com os principais consumidores de hidrogênio verde na Europa e na Ásia (...). A TotalEnergies, como acionista da Casa dos Ventos, está atuando conjuntamente conosco para o desenvolvimento do projeto, utilizando sua expertise em moléculas verdes e acesso ao mercado europeu e global”, diz Araripe.
O presidente da Fiec e vice-presidente da CNI, Ricardo Cavalcante, destaca que além das vantagens naturais do Ceará para a geração de energia renovável com baixo custo marginal, o Estado apostou na construção de uma infraestrutura portuária, tecnológica e logística que o conecta ao restante do mundo.
Segundo a consultoria Mirow & Co., a cadeia do hidrogênio verde no Brasil tem cerca de 40 potenciais projetos em diferentes momentos de desenvolvimento, a maior parte deles em estágios iniciais de análises. Se os projetos saírem do papel e ganharem escala, este mercado pode ser uma das apostas para destravar mais investimentos no setor elétrico, já que cria uma nova demanda por energia renovável no Brasil.
O presidente AECIPP, associação que representa as empresas do Complexo do Pecém, Eduardo Amaral, acredita que o Ceará pode se transformar um centro global de energia limpa, dada a localização privilegiada, próxima à Europa. Nos cálculos de Amaral, a cadeia produtiva gerada pelas empresas pode ter um impacto social na criação de 50 mil empregos, diretos e indiretos, somente durante a fase de implantação.
Como o Nordeste reúne as condições ideais para produzir muito hidrogênio verde e o Brasil tem pouco potencial para consumo no curto prazo, a produção no Porto de Pecém tende a ser inicialmente toda voltada para o mercado externo, conforme afirmou o governador do Ceará, Elmano de Freitas (PT), em entrevista ao Valor.
Com 30% de participação em Pecém, o Porto de Roterdã, o maior da Europa, é candidato a absorver toda a produção inicial. O objetivo seria contribuir para a descarbonização da economia europeia, muito dependente de fontes consideradas poluentes. Um terço da energia consumida na Alemanha, por exemplo, passa por Roterdã, sendo predominantemente não renovável.
A diretora executiva da Associação Brasileira da Indústria do Hidrogênio Verde (Abihv), Fernanda Delgado, diz que o Brasil precisa dar um segundo passo para o setor virar realidade: a inserção dos incentivos com recursos do Tesouro Nacional. A Câmara dos Deputados aprovou um crédito fiscal de R$ 18,3 bilhões passível de ser concedido de 2028 a 2032. A torcida da dirigente é para que o texto trâmite rápido no Senado.
Mas a proposta divide opiniões. Como hoje não há um mercado doméstico para o hidrogênio verde, alguns analistas dizem que não faz sentido o Brasil dar incentivos para descarbonizar a indústria internacional.
Ao mesmo tempo, companhias como a ArcelorMittal Pecém, unidade do grupo ArcelorMittal instalada no litoral do Ceará, que utiliza carvão siderúrgico importado, são cobradas a serem mais ambiciosas na descarbonização. Isso criaria uma demanda interna e a siderúrgica poderia adotar tecnologias mais limpas em suas operações domésticas.
Contudo, não há uma decisão tomada pela empresa sobre a transição energética com hidrogênio. O CEO da companhia, Erick Torres, diz que é necessário amadurecer os processos industriais na siderurgia. Até isso ocorrer, a produtora de aço está realizando adaptações no alto-forno para utilizar gás natural, embora o custo elevado do insumo ainda seja um desafio.
Outra alternativa para o mercado interno é utilizar a infraestrutura da ferrovia Transnordestina para transportar amônia verde, derivada do hidrogênio, ao setor agroindustrial na região do Matopiba (Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia).
Sócia do Rolim Goulart Cardoso Advogados, Maria João Rolim colaborou diretamente nas discussões da lei e destaca que o principal avanço foi a atuação conjunta do setor, que resultou na eliminação de subsídios no setor elétrico e na alocação dos incentivos fiscais a partir de recursos de política pública.
No entanto, Rolim alerta para pontos que ainda dependem de regulamentação, com destaque para a questão da certificação do hidrogênio que precisa estar em conformidade com os padrões internacionais, em particular o europeu. Ela também enfatiza a importância de um modelo de elegibilidade para os incentivos que seja eficiente na alocação de recursos públicos, privilegiando projetos com menor emissão de carbono e maior retorno público sobre o investimento.
Fonte: Valor Econômico