Por Ada Suene Nery é consultora da TORRE Comunicação e Estratégia
O navio encalhado no Canal de Suez, por seis dias, é uma história que, certamente, atravessará o tempo por sua dramaticidade e caráter pedagógico. No fim de março, enquanto a imprensa mundial fechava um ano da cobertura da Covid-19, 200 mil toneladas da embarcação Ever Given bloqueavam cerca de 12% de todo o comércio global, impedindo acesso à principal conexão marítima entre a Ásia e a Europa. A situação estressou gigantes da logística, importadores de insumos e produtos, frustrando, inclusive, as expectativas de quem fez pequenas encomendas pelo mercado de varejo on-line.
Naquela semana, durante a cobertura dos principais assuntos pela grande mídia, as manobras para a retirada no navio dividiram as tensões com o recrudescimento da pandemia no Brasil, quando as mortes pelo novo coronavírus já ultrapassavam a média de 2600 vítimas por dia.
Foram 144 horas de cobertura intensa. Mais de 600 mil conteúdos produzidos e disponibilizados na internet sobre os desdobramentos da missão para o desencalhe do Ever Given. Segundo o jornal estadunidense The Washington Post, “o comércio global se atrasava a cada hora, em cada extremidade do Canal de Suez bloqueado. A pressão econômica e política para libertar o navio só crescia. O mundo, distraindo-se de um ano de pandemia, não tirava o olho das telas”.
O jornal decifrou como uma distração aquilo que fugia às batalhas diárias por informações abertas e objetivas sobre a pandemia. Mas, o que chegou à população brasileira durante os acontecimentos, até que, finalmente, no dia 29 de março, Ever Given fosse liberado? Isso, é claro, para além da profusão de memes, tão criativos quanto numerosos espalhados pelas mídias sociais.
Jornais tradicionais na cobertura econômica no Brasil ressaltavam as preocupações relacionadas às perdas das empresas especializadas em comércio marítimo no mundo. Até o último dia de bloqueio, a estimativa desses grupos foi de que os prejuízos, ligados direta ou indiretamente ao encalhe, superariam R$ 300 bilhões, quando havia mais de 400 embarcações na fila à espera da liberação do canal, conforme informações replicadas do portal internacional BBC.
A agência de notícias Bloomberg entregou mais números, inspirados na cobertura do londrino Lloyd’s List, o jornal mais antigo do mundo. A agência publicou que cerca de US$ 9,6 bilhões (mais de R$ 50 bilhões) em tráfego marítimo diário foram interrompidos pelo navio – sendo US$ 5,1 bilhões em mercadorias, no sentido Europa, e outros US$ 4,5 bilhões, em direção à Ásia. A reação do mercado global foi de desabastecimento e aumento em dobro das taxas de embarque para os navios petroleiros.
De acordo com o The New York Times, “as cadeias globais de fornecimento já estavam sob pressão” antes do incidente. O jornal, que comparou o navio ao Edifício Empire State, por ter a capacidade de levar mobílias para equipar 20 mil apartamentos, enfatizou que “a crise havia durado pouco, mas era fabricada há anos”, referente à fala de um representante da maior empresa mundial do setor, a A.P. Moller-Maersk, que concluiu que “o encalhe deixaria rastros de perturbações e atrasos no frete marítimo global por semanas, possivelmente meses, até serem sanados”.
Enquanto o navio era monitorado inclusive pela Agência Espacial Americana (Nasa), os grandes veículos do Brasil, como G1, Estadão, UOL, O Globo, canais de TV e rádio, entre outros, reproduziam com fidelidade as preocupações trazidas pela mídia internacional, enumerando os impactos na cadeia econômica global, enquanto mantinham informações difusas sobre como tudo isso poderia trazer reflexos na vida do brasileiro, em suas relações de consumo, que vão desde o café da manhã, passando pelo transporte público, pelas importações de insumos e outras co-dependências naturais da logística internacional.
Sem perdas para as divertidas imagens disseminadas nas redes sociais, a cobertura de incidentes que geram consequências globais, com interferência no mercado interno brasileiro, poderia contar mais com as percepções de quem vive a logística nacional e conhece os eventuais prejuízos de um evento externo. Para isso, é preciso garantir que sejam consideradas as perspectivas de atores que estão envolvidos com o tema no país. Institutos, centros de pesquisas, associações, empresas nacionais e representantes públicos do setor de infraestrutura e logística devem contribuir, rotineiramente, em debates que conectam a economia mundial ao dia-a-dia do cidadão, fornecendo informações e análises sobre os abalos encadeados pelo gap logístico, afetando a movimentação de cargas, interferindo em prazos, valores de fretes e o cálculo final das mercadorias que chegam às prateleiras.
A adoção de narrativas menos técnicas, porém robustas, coaduna com a contínua democratização da informação, uma valorosa premissa para os profissionais da comunicação, em tempos definidos pela horizontalização e interatividade. Um acontecimento que conquista a aderência do público como o caso do navio Ever Given seria a oportunidade inescapável para trazer para o centro do debate público as decisões que vêm sendo formuladas para a infraestrutura logística, as proposições e projetos públicos para o segmento, as soluções de curto e longo prazo, desmistificando complexidades e proporcionando a compreensão pela sociedade acerca de pautas de relevância que, a princípio, seriam formuladas sem a angulação do interesse público de fato e de direito sobre tais assuntos.
A cobertura do Ever Given no Brasil, ancorada pela mídia internacional, deixa claras lições a respeito das oportunidades desperdiçadas. Entre os brasileiros, existem conhecimento, interesse, curiosidade e alcance. Mas, para utilizar isso em favor tanto do mercado logístico, quanto da sociedade que usufrui dos serviços, será necessário otimizar o uso de ferramentas de comunicação, desbravar espaços na imprensa nacional, para garantir reflexões baseadas em experiências de atores nacionais, expondo caminhos, críticas e questionamentos acerca de políticas públicas e até dos modelos privados adotados.
Fonte: Estadão
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