A guerra entre Rússia e Ucrânia acelerou o aumento dos preços das commodities, o que beneficia de um lado países da América do Sul como Brasil, Argentina, Chile e Peru.
Contudo, as vantagens concedidas são apenas no curtíssimo prazo, e o isolamento russo causado pelas sanções ainda prejudica as nações do Caribe e o México, que vinham atraindo fluxos importantes de turistas e investimentos da Rússia. A análise é de Carlos Mussi, diretor do escritório no Brasil da Comissão Econômica para América Latina e o Caribe (Cepal), órgão da Organização das Nações Unidas (ONU).
Em entrevista ao Valor, Mussi afirmou que a guerra, assim como a pandemia, sinaliza que o Brasil precisa tomar decisões importantes em relação à dependência de produtos importados estratégicos como fertilizantes e outros da área de saúde. Leia a seguir os principais trechos:
Valor: As sanções praticamente excluíram a Rússia do sistema econômico internacional, ao menos no Ocidente. Isso gera impacto para a América Latina?
Carlos Mussi: A Rússia estava integrada aos mercados financeiros, ao comércio. Já era como a Organização Mundial do Comércio (OMC) chama de uma economia de mercado. Portanto, as sanções e as respostas do governo russo impactam na economia mundial. A Ucrânia, por outros motivos, também está fora momentaneamente pela situação que está. É um país que,
É um país que, inclusive, tem uma história de conflitos justamente pela sua capacidade de produção de alimentos, cereais e outros recursos naturais, além da capacidade de ligar o Báltico ao mar Negro. Por isso, temos na história várias tentativas de dominar aquela área. A terra roxa ucraniana foi base do Império Russo e da União Soviética. Então, sim, a ausência tanto de um como de outro no sistema internacional com certeza tem impactos sobre o mundo e a América Latina.
Valor: Algum país da região se vê mais prejudicado pelo isolamento da Rússia?
Mussi: Destaco a região do Caribe e o México. Na economia moderna, os setores de serviços se tornam fundamentais na geração de empregos e renda. Embora ainda não tivéssemos um fluxo razoável de turistas russos para a América do Sul, para o Caribe e também para o México havia um número importante que tende a ser bastante reduzido. Perde-se o que era uma oportunidade de crescimento diferencial. Comparado aos efeitos da pandemia, quando houve suspensão de cruzeiros e interrupção nos fluxos de turistas europeus, canadenses ou americanos, a perda do turista russo é pequena, mas não deixa de ser importante.
Valor: Há algum país latino-americano que possa colher vantagens econômicas em meio ao conflito?
Mussi: Sempre temos que tomar cuidado ao generalizar a América Latina. Podemos dizer que o Cone Sul, especialmente Brasil, Argentina, Chile e Peru, além dos produtores de petróleo como Venezuela e de novo o Brasil, podem ganhar algo, mas reforço que para a América Central e o Caribe há perda razoável dos termos de troca.
Valor: Como os países sul-americanos podem se beneficiar economicamente?
Mussi: Para a América do Sul especialmente, o vento da guerra pode ajudar no sentido de elevar commodities. Mas, veja bem, um dos impactos do conflito é a confusão na área de transportes e logística. Porque não é somente o que iria para a Ucrânia ou para a Rússia, mas toda a reprogramação que já estava ocorrendo por causa da pandemia e agora é é agravada pela diminuição dos acessos aos países bálticos e à própria Rússia. Ao acompanhar aplicativos de aviação você vê um buraco e é cada vez menos frequentes os voos pela Rússia. É possível ver isso também na alteração da logística marítima e de outros serviços. Além disso, o Brasil, por exemplo, é atingido negativamente também porque a Rússia é, ou era, um mercado emergente e os consumidores russos estavam prontos para comprar produtos e comer nossas comidas. Há ganho via elevação de preços das commodities para esses países, mas apenas no curtíssimo prazo.
Valor: E a elevação dos preços das commodities também pressiona mais a inflação, um problema que preocupa o Brasil desde o passado…
Mussi: Sim. O problema é mais macro. O aumento das commodities dão um novo impulso para o processo inflacionário. E consequentemente a resposta do Banco Central [de aumentar juros] vai impactar. Vamos ver como fica no final o resultado líquido do aumento dos juros com o controle da inflação e o nível de renda. Ainda, a questão de como os investidores estrangeiros vão ver a questão de risco para os mercados emergentes como um todo.
Valor: Brasil e outros países da região correm o risco de enfrentar um cenário de estagflação agravado pela guerra?
Mussi: A questão principal não é tanto estagflação, mas a continuidade da estagnação. Tirando os casos da Venezuela e da Argentina, que já tinham processos inflacionários instalados, os demais países sofreram em 2021 o impacto da desvalorização de suas moedas e da inflação externa, decorrente de restrições de oferta e problemas de logística. Claro, com o conflito na Europa os preços externos, principalmente de commodities, estão subindo. No entanto, sobretudo na América do Sul, esse movimento traz valorização da moeda local. Além disso, vários países estão respondendo com elevação de suas taxas de juros internas.Até o momento, os países da região continuam com posição de cautela em sua política fiscal. Caso não haja deterioração do cenário internacional com restrições ainda maiores ao comércio e a fluxos financeiros mundiais, não há fagulhas para haver descontrole da inflação.
Valor: Podemos esperar um retorno da estabilidade na inflação no futuro próximo?
Mussi: Certamente não voltaremos rapidamente aos valores mínimos observados antes da pandemia, mas não espero taxas de inflação crescentes. Mas o efeito colateral dessa política [de alta de juros] é o seu impacto sobre o crescimento das atividades produtivas, especialmente sobre o investimento. O boom de commodities poderá, com a valorização da moeda local, estimular uma expansão do consumo de bens importados. No entanto, para o investimento há maior controvérsia. Alguns apontam que os bens de capital para os produtores locais ficam mais baratos, enquanto outros lembram que a valorização acentua os custos locais retirando competitividade dos produtos exportados e não incentivando a vinda de novo capital externo.
Valor: Quais lições os efeitos da guerra entre Rússia e Ucrânia podem deixar para o Brasil?
Mussi: Assim como na pandemia, uma lição desse conflito é ver como nós temos dependências de produção externa como, por exemplo, agora com os fertilizantes. Vamos adotar a política que tínhamos? Aceitar que é mais barato importar e achar que não vale a pena ter capacidade produtiva local? O mesmo aconteceu na área de saúde. Isso é algo que não é só um cálculo econômico, mas também político, de análise de risco. Uma segunda lição é que o Brasil tem que ver como operar melhor em commodities. Dado o nosso tamanho, poderíamos ser mais “price maker” [formador de preço] e menos “price taker” [tomador de preço].
Fonte: Valor Econômico