Mais ou menos metade do suco de laranja consumido em todo o planeta vem dos pomares do estado de São Paulo, proclama Duarte Nogueira.
“Temos tudo que começa com a letra C”, afirma o prefeito de Ribeirão Preto, uma cidade a quatro horas de distância da capital do estado, antes de recitar a lista de nomes em português dos produtos rurais produzidos na região.
“Café, cana, cítricos, carne e celulose”, o principal ingrediente do papel. “A agricultura cresce cada vez mais e isso não é só virtude de nossa região, mas de todo o Brasil”, complementa.
O país sul-americano é um dos maiores produtores mundiais de alimentos —de soja e açúcar a carne bovina e bananas. Abençoado com ampla riqueza natural, como vastos depósitos de minério de ferro e reservas de petróleo em águas profundas, o Brasil também fornece algumas das matérias-primas mais importantes para as economias modernas.
A maior economia da América Latina agora está aproveitando a alta nos preços de muitos desses produtos básicos, com a suspensão das restrições relacionadas à Covid-19 e o retorno do crescimento econômico mundial. Entre os operadores otimistas, há até rumores quanto a um novo “superciclo” de commodities.
Depois do desordenamento nas cadeias mundiais de suprimento que restringiu a disponibilidade de certos itens, a demanda voltou a ser alimentada pela retomada do crescimento na China, que suga recursos de todo o planeta, e por conta dos gastos de governos com programas de recuperação, especialmente nos Estados Unidos.
O índice de commodities Bloomberg, depois de uma forte queda no começo da pandemia, se recuperou e subiu a um nível visto pela última vez em 2015. O custo mundial da comida caiu pela primeira vez em um ano, no mês passado, com declínios nos preços do óleo vegetal, cereais e laticínios, de acordo com um índice da ONU (Organização das Nações Unidas), mas o indicador continua 30 pontos mais alto do que o nível que detinha no período em 2020.
O impacto está sendo sentido de forma aguda no setor brasileiro de agronegócio. Combinado a uma queda na taxa de câmbio, que eleva as receitas obtidas com produtos denominados em dólares, isso beneficia muitos agricultores brasileiros, e as comunidades que cercam as terras agrícolas.
Maurílio Biagi Filho, magnata de uma família que produz açúcar e etanol em Ribeirão Preto, descreve a confluência entre preços elevados para produtos agrícolas e produção recorde como “muito rara”.
“Quando isso acontece, quando as duas coisas o favorecem, é extraordinário”, ele acrescenta.
A região em torno de Ribeirão Preto, ou “a Califórnia brasileira”, como às vezes é chamada, é prova da prosperidade que fluiu da explosão na produção agrícola do país nas últimas décadas.
Concessionárias Porsche e BMW se aninham entre quarteirões de edifícios de apartamento luxuosos, num bairro da região sul da cidade. A população de Ribeirão Preto cresceu em dois terços nos últimos 30 anos. Mas a prosperidade fica muito distante dos problemas que agora afligem grandes porções de uma nação de 213 milhões de habitantes.
Milhões de pessoas perderam o emprego por causa da crise de saúde pública, o que conduziu o desemprego a quase 15%.
Em um país de abundância, a fome cresceu junto com a inflação —causada em boa medida pelos preços mais altos que os produtos brasileiros estão atingindo no mercado internacional—, que está tirando muitos produtos de uso cotidiano do alcance dos cidadãos.
Para os cidadãos e os investidores, a forma que a alta das commodities tomará terá influência importante não só sobre a convalescença brasileira da Covid-19 mas sobre o destino do país nos próximos anos. Há esperanças de que ajude a economia a pegar no tranco, que vinha lenta já antes da pandemia, e que isso facilite a realização sempre prometida do potencial do país.
Uma “janela de oportunidade” está se abrindo para o Brasil, disse Gustavo Arruda, economista do BNP Paribas.
“Existe um boom do qual podemos tirar vantagem. Podemos fazer nada \e desperdiçar os ganhos], ou podemos aproveitar a situação ao máximo e fazer o que precisa ser feito”, ele diz, aludindo a reformas estruturais, prometidas há duas décadas, para tornar a economia mais competitiva.
Mas a despeito do otimismo renovado, existem obstáculos que podem impedir que a alta das commodities se traduza em uma recuperação mais ampla.
As autoridades econômicas teriam de evitar os erros cometidos na bonança anterior das commodities, na década de 2000. Então, um dos mercados emergentes mais favorecidos entre os investidores, o desempenho posterior do Brasil decepcionaria, dada a perda de oportunidades de melhorar a produtividade com a reforma da infraestrutura e a redução da burocracia.
E em paralelo ao boom agrícola, uma desindustrialização prolongada está acontecendo no Brasil, com fechamento de fábricas e demissões de operários, em um momento no qual muitas indústrias tradicionais enfrentam dificuldades para se manterem competitivas.
A maneira pela qual o Brasil lidará com essas duas tendências pode determinar se o país conseguirá se libertar de um padrão já muito antigo de expansão e contração, que remonta às suas origens como colônia exportadora de recursos.
Na sede do sindicato dos metalúrgicos, na região do ABC, cujo nome é referência a três cidades industriais ao sul de São Paulo, e onde o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva construiu sua reputação como líder de greves durante a ditadura militar, o diretor Aroaldo Oliveira da Silva diz que o boom da agricultura, sozinho, não bastará para erguer toda a sociedade.
“\[Quando] tudo isso acabar de vez, seremos na verdade um país agrário. Mas estaremos na miséria absoluta. Porque hoje em dia a agricultura é tão mecanizada que não absorve mão de obra”, ele diz. “O Brasil não tem como se sustentar só com o agronegócio”.
O CELEIRO DO PLANETA\
Ao longo de sua história, as fortunas do Brasil estiveram em muitos momentos vinculadas às manias de exportação. Do açúcar nos dias iniciais da conquista portuguesa ao ouro, café e borracha amazônica no final do século 19.
Na década de 2000, o país surfou a onda do superciclo das commodities e desfrutou de seus altos preços.
Sob o governo de Lula, os índices de pobreza caíram, quando o governo de esquerda que ele liderava decidiu gastar parte dos dividendos fiscais em programas sociais. Mas quando aquele boom começou a esfriar, surgiu uma década perdida na qual os padrões de vida despencaram.
Um grande escândalo de corrupção, políticas intervencionistas fracassadas adotadas pela sucessora de Lula, Dilma Rousseff, e protestos de massa que prenunciaram seu impeachment serviram de pano de fundo à pior recessão da história do país, em 2015 e 2016.
A despeito do tumulto do período recente, no entanto, o cinturão agrícola do Brasil manteve a revolução silenciosa que cimentou seu status como potência da agricultura.
“Na década de 1970, o Brasil não tinha segurança alimentar. Importávamos tudo: carne da Europa, leite dos Estados Unidos, feijão do México, maçãs da Argentina”, diz Celso Moretti, presidente da Embrapa, uma organização de pesquisa agrícola controlada pelo governo.
“Em menos de cinco décadas, conseguimos estabelecer uma agricultura tropical competitiva e sustentável que não tem paralelos no mundo moderno”, ele acrescenta. “Há regiões em que conseguimos duas ou três safras por ano”.
Boa parte disso está centrado no Cerrado, uma região de savana nos altiplanos do centro do Brasil que ocupa mais de um quinto do território nacional. Novos técnicas e desenvolvimentos tecnológicos, bem como a conversão de terras florestais, transformaram vastas áreas de estados como o Mato Grosso em plantações que lembram as da região centro-oeste dos Estados Unidos.
Os resultados foram notáveis. Hoje, o país sul-americano é o maior produtor de soja e café e o maior exportador mundial de carne bovina e açúcar.
“O Brasil já o celeiro do planeta. Temos o maior saldo comercial no comércio de produtos agrícolas”, diz José Carlos Hausknecht, da consultoria de agronegócio MB Agro Consultoria. “Se estudarmos as projeções para o futuro, veremos um aumento da fatia brasileira no mercado mundial”.
Isso oferece um raro ponto positivo em meio à situação sombria da economia nacional. O PIB (Produto Interno Bruto) brasileiro se contraiu em 4,1% no ano passado durante a pandemia, e só a agricultura registrou crescimento positivo, de 2%.
O agronegócio como um todo, compreendendo insumos, plantio e pecuária, processamento e serviços, ampliou sua fatia na economia durante a pandemia e pode ultrapassar os 30% do PIB este ano, de acordo com estimativas do Centro de Estudos Avançados de Economia Aplicada da USP (Universidade de São Paulo ().
E a despeito da pior seca em uma década no centro do Brasil, e de uma projeção de crescimento mais modesta, uma safra recorde de grãos, cereais e sementes oleaginosas está prevista para 2021, de acordo com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
“Nos anos de desempenho ruim que nossa economia teve, o PIB teria se saído ainda pior se não fossem as exportações de produtos agrícolas”, diz Pedro Dejneka, da MD Commodities, uma empresa que fornece informações de mercado.
Embora isso tenha enriquecido um pequeno número de proprietários rurais e pecuaristas, fica menos claro se o novo boom de commodities, que inclui os benefícios de uma alta nos preços do minério de ferro, vai distribuir a riqueza de maneira mais ampla pela sociedade.
Marcos Fara Neves, especialista em agronegócio na USP, aponta para Ribeirão Preto como exemplo da maneira pela qual a agricultura pode alimentar o desenvolvimento urbano.
“Quando você visita essas cidades construídas nos últimos 30 anos, elas têm hotéis de luxo, bons restaurantes, academias de ginástica, sorveterias. O agronegócio traz dinheiro, e o setor de serviços floresce. Ribeirão Preto tem quatro grandes shopping centers —é muito até pelos padrões dos Estados Unidos”, ele diz. “O crescimento das oportunidades acontecerá no campo”.
Arruda, do BNP Paribas, reconhece que embora existam efeitos derivados positivos do boom no setor de commodities, ele também gera uma concentração de renda que pode exacerbar a desigualdade. A agricultura moderna requer grandes propriedades mas não muita mão de obra, e depende menos de outros setores, e os impostos efetivos sobre as exportações tendem a ser baixos.
“Há produtividade muito alta, concentrada nas mãos de poucos”, ele acrescenta.
FÁBRICAS FECHADAS\
A ascensão do setor agrícola brasileiro acontece em um período de problemas no setor industrial do país.
Quando a Ford decidiu, este ano, deixar de fabricar veículos no Brasil, depois de um século no país, foi um choque para milhares de trabalhadores e um baque para o orgulho nacional. Mas essa foi apenas a mais recente de uma série de saídas que causaram alarme.
A Mercedes-Benz parou de fabricar carros de passeio no Brasil não muito antes (embora continue a fabricar caminhões), e marcas como Sony e Canon também encerraram suas operações.
O ministro Paulo Guedes (Economia) comentou recentemente sobre o foto de que a parcela do setor de agronegócio no PIB havia superado a do setor de “transformação”, um termo amplo que abarca toda espécie de indústria, do plástico e produtos farmacêuticos a bebidas e automóveis. Ele não mediu palavras.
“Estamos nos desindustrializando lentamente, e isso é ruim para o país”.
Umas das ironias do processo é que a escassez de aço e de componentes resultou em entregas mais lentas de equipamento agrícola.
Com suas usinas de petroquímicos, fábricas de automóveis e metalurgias, a região do ABC por décadas foi o coração industrial do mais desenvolvido estado brasileiro. Mas a maior das três cidades, São Bernardo do Campo, já estava tendo de lidar com o fechamento anterior de uma fábrica da Ford, que resultou na perda de quase três mil empregos em 2019.
O prefeito Orlando Morando insiste que a decisão teve por base a estratégia internacional da montadora americana naquele momento, e não fatores locais. A velha fábrica agora está sendo convertida em uma central de logística, e o município está tentado diversificar sua economia.
No entanto, a região do ABC deixou de ser o ímã que era no passado para migrantes de estados mais pobres.
“No passado, as grandes fortunas se concentravam nas metrópoles”, diz Morando. “Hoje existe uma forte concentração de riqueza no campo”.
A tendência de desindustrialização é duradoura. Desde a metade da década de 1980, a fatia da indústria no PIB caiu à metade, de acordo com uma análise da FGV (Fundação Getúlio Vargas). Entre 2013 e 2019, 1,4 milhão de empregos industriais foram perdidos, o equivalente a 15% da força de trabalho do setor, de acordo com números do IBGE.
Especialistas dizem que isso importa porque a indústria tende a criar empregos mais seguros e tem um “efeito multiplicador” mais forte sobre outras áreas de atividade econômica.
Rafael Cagnin, economista do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial, descreve a experiência do Brasil como “prematura”, comparada à de economias mais avançadas que eram mais ricas quando o esvaziamento de seu setor industrial começou.
A terceirização de atividades de baixa tecnologia como a produção de roupas, tecidos e sapatos para economias de custo mais baixo acontece frequentemente, à medida que uma economia se torna mais rica, ele explica.
“Mas no caso brasileiro, boa parte da desindustrialização prematura vem em atividades de maior intensidade tecnológica, como maquinaria e equipamento, produtos químicos, petroquímicos e a indústria automobilística”.
“\[Isso] bloqueou a continuação do desenvolvimento do país”, ele acrescenta.
Continuam a existir exemplos indubitáveis de excelência. A terceira maior fabricante mundial de aviões, Embraer, é a joia na coroa da engenharia brasileira. Mas, para Cagnin, o “tecido industrial” como um todo decaiu.
DEPENDÊNCIA DE EXPORTAÇÕES\
Já que os preços das commodities tendem a ser bastante voláteis, uma maior dependência de exportações como essas gera o risco de gerar maior exposição do país aos altos e baixos dos ciclos mundiais.
Mas o setor agrícola brasileiro confunde a distinção que os economistas às vezes fazem entre a produção de commodities, em muitos casos uma atividade de baixo valor adicionado, e a de bens e serviços mais sofisticados que geram maior riqueza para a sociedade.
“O agronegócio agora não envolve apenas fazendas, porque exportamos tecnologia, máquinas e software. Temos muitas startups”, diz Denis Arroyo Alves, diretor da Orplana, uma associação da produtores de cana de açúcar. “É uma nova economia que tem por base o campo”.
Para os otimistas, isso oferece uma oportunidade de revitalizar a indústria brasileira e expandir outras atividades avançadas conectadas a ela. De maquinaria “inteligente” para trabalhos pesados a tratores autoguiados, produtos químicos “verdes”, computadores e produtos eletrônicos, existe um potencial considerável, se condições e apoio adequados existirem.
Um segmento próspero de empresas iniciantes de “agritech” mostra que muitos empreendedores já estão compreendendo o fato.
“O agronegócio pode ser um catalisador da reindustrialização”, diz Cagnin. “Ainda que isso por enquanto não exista em grande escala, já temos exemplos”.
Os vendedores de soja e de carne bovina, especialmente, estão sofrendo mais pressão para provar que suas cadeias de suprimento não envolvem desflorestamento, e assim haverá mais necessidade de rastreamento via satélite e de sistemas confiáveis de verificação de origem.
Com ameaças de boicotes de produtos por parte de consumidores e supermercados europeus preocupados com a Amazônia, a proteção ambiental —um tema a que o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) não confere grande importância— deve se tornar tema importante para as grandes empresas de agronegócio, assim como a redução das emissões de poluentes. As duas coisas envolverão inovações, tecnologia e investimento em pesquisa e desenvolvimento.
No entanto, muitos economistas enfatizam a necessidade de reformas profundas para ajudar a enfrentar o notório “custo Brasil”, que desestimula os fabricantes. Isso inclui lidar com impostos bizantinos, burocracia pesada e infraestrutura obsoleta ou inexistente, especialmente nos transportes.
Um projeto de reforma tributária está tramitando no Congresso. Mas com eleições presidenciais dentro de apenas um ano, existem dúvidas de que exista o desejo político de impor as mudanças abrangentes que são necessárias.
Ao contrário do que ocorreu no boom das commodities passado, desta vez a China não deve retornar ao ritmo de crescimento astronômico que a transformou em superpotência comercial. Muitos analistas previram uma alta forte mas mais curta, por conta do reabastecimento dos armazéns depois do caos da Covid.
“Haverá uma onda de dois ou três anos de crescimento acelerado”, diz Welber Barral, cofundador da BMJ Consultores Associados. “Uma grande recuperação, mas depois disso não se sabe”.
Fonte: [Folha
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