Por Guy Perelmuter, engenheiro da computação e mestre em Inteligência Artificial
O navio cargueiro Ever Given — com 400 metros de comprimento, quase do mesmo tamanho que o Empire State Building — encalhou durante praticamente uma semana em março de 2021 no Canal de Suez, bloqueando o fluxo de uma das principais rotas náuticas do planeta. Este foi provavelmente o episódio mais filmado, fotografado e comentado nos mais de 150 anos de história dos 193 km que ligam o Mar Vermelho ao Mediterrâneo e formam a principal rota comercial entre a Ásia e a Europa.
Quando o canal foi liberado novamente, após uma complexa operação que envolveu uma frota de rebocadores, dragas e equipes de salvamento, cerca de 450 embarcações aguardavam passagem (sem considerar aquelas que foram desviadas e tiveram suas viagens aumentadas em cerca de 6,5 mil quilômetros). De acordo com a Lloyd’s List, uma das principais fontes de notícias e análises da indústria de navegação de carga, o volume de bens impedidos de circular pelo canal era de aproximadamente US$ 10 bilhões por dia.
Em nossa última coluna, falamos sobre estruturas de governança — uma cadeia de pessoas e processos cujo bom funcionamento irá definir o sucesso ou fracasso de determinado negócio ou instituição. Agora, uma das cadeias mais complexas do planeta — a cadeia logística — está passando por uma série de desafios que vêm gerando questionamentos e a elaboração de potenciais novas estratégias com impactos relevantes tanto políticos quanto econômicos e tecnológicos.
É possível associar o início desta crise à pandemia da covid-19, que gerou um descompasso entre oferta e demanda. Muitas empresas acreditaram que a recessão causada pelo vírus iria gerar uma diminuição na demanda por produtos, mas o que acabou ocorrendo foi bem diferente: o nível de consumo, especialmente via comércio eletrônico, aumentou significativamente (possivelmente porque o dinheiro que as pessoas não estavam gastando em restaurantes, cinemas, hotéis, passagens aéreas e afins acabou sendo utilizado em outros produtos). O documentário Chain Reaction (em português, “Reação em Cadeia”), do Wall Street Journal, resume em seu subtítulo a dimensão do problema: why global supply chains may never be the same (algo como “porquê cadeias de suprimento globais podem nunca mais serem as mesmas”).
Antes de explorarmos os desdobramentos deste cenário é importante entender como chegamos até o modelo atual que rege a lógica da manufatura e do transporte de bens. Basicamente, a busca por regiões onde a mão de obra e a disponibilidade de matéria-prima são suficientemente baratas, aliada a formas eficientes para transportar os produtos fabricados até o consumidor final estabeleceram as regras para a estruturação das cadeias logísticas globais. E, por essa razão, um grande número de produtos precisa cruzar o planeta para chegar até você.
comércio eletrônico experimentou um forte crescimento durante a pandemia: de acordo com a International Trade Administration (“Administração de Comércio Internacional”, órgão do Departamento de Comércio do governo dos Estados Unidos), em 2018 o percentual das vendas globais de varejo realizadas online era de 12,2%. Em 2019, este número estava em 13,6%, e em 2020 saltou para 18%. As estimativas para o final de 2022 ultrapassam os 20%. Ainda de acordo com eles, os três países com o maior aumento no número de negócios passando a realizar vendas online como uma alternativa às compras presenciais foram o Brasil, a Espanha e o Japão.
A comodidade e praticidade à qual nos acostumamos — e da qual não abrimos mão — é mais uma abstração criada pelo desenvolvimento de interfaces entre sistemas artificiais e a sociedade. Por trás do botão de “comprar”, pressionado milhões de vezes ao redor do mundo em centenas de websites distintos, esconde-se uma infraestrutura extraordinariamente complexa e interdependente. Como o mundo inteiro está descobrindo, esta infraestrutura é extremamente sensível: pandemias, disputas geopolíticas, hackers, acidentes, atentados ou até mesmo erros de programação podem causar prejuízos a negócios de qualquer tipo em qualquer parte. Em nossa próxima coluna vamos falar da jornada de um produto desde a tela do seu dispositivo até a porta da sua casa. Até lá.
Fonte: Estadão